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03/02/2022 - 10h00

Psicopatia nas empresas: isso também é assunto para o compliance

Para especialista, quando se fala de compliance é preciso abordar também o aspecto humano

 

 

Por Gabriela Alves Guimarães*

 

Tema que pode ser considerado ancião, uma vez que é relacionado à Conferência de Haia (1907), e vem sendo amplamente difundido, haja vista a evolução das práticas empresariais, com a implementação de programas em resposta à evolução normativa e anseios do mercado ante grandes escândalos de corrupção, o compliance é ainda pouco abordado sob a ótica humana, embora as empresas sejam feitas de pessoas.

 

Não obstante comum sua associação à ética, particularmente pela denominação de códigos de conduta como sendo códigos de ética, é imperativo que a conduta humana seja abordada para além de frugais referências aos valores morais que formam os princípios gravados nos códigos corporativos. É preciso entender os transtornos humanos, tendo em vista que podem ser fator propulsor da má conduta ou putrefazer a cultura organizacional.

 

Nesse contexto, relevante o entendimento da psicopatia, distúrbio que tem como principal característica a ausência das emoções morais e que afeta mais homens do que mulheres- talvez esteja aí parte da explicação da maioria das fraudes – 79% – ser cometida por homens, como aponta pesquisa da KPMG intitulada Perfil Global do Fraudador).

 

A psicopatia é um transtorno de personalidade que apresenta como principais características a violação e o desrespeito aos direitos alheios, com o objetivo de satisfazer os próprios desejos, físicos e emocionais.

 

Os tipos de psicopatia são variados, mas alguns apresentam nuances de fácil percepção no ambiente de trabalho, devendo os profissionais que trazem seus traços serem monitorados, de modo a evitar atuação contraproducente, contrária aos valores e interesses da empresa, e, por consequência, prejuízos financeiros, operacionais e de ordem reputacional à empresa.

 

O transtorno histriônico talvez seja a psicopatia de mais fácil identificação, haja vista seus detentores, numa sede de reconhecimento, se esforçarem para chamar atenção, demonstrarem sua superioridade. Com tendência ao exagero e ao entusiasmo, as pessoas com essa condição geralmente agem de forma teatral e detêm uma postura exagerada, seja no trato de fatores que agradam ou que desagradam – nessa última opção, muito comum comportamentos insultivos ou agressivos.

 

A intensividade com que tratam as coisas, inclusive suas paixões e ideologias, faz dos histriônicos pessoas instáveis, com fantasias desenfreadas e tendência a mentiras. Com autoimagem distorcida, podem, num primeiro momento, serem convincentes, uma vez que geralmente adotam uma postura provocante e sedutora para impressionar quem está ao seu redor, porém, um olhar atento permitirá detectar uma psique imatura, infantil.

 

A vaidade que o histriônico tem em relação a si também costuma valorizar nos outros. Normalmente, esses indivíduos costumam engrandecer a figura de personalidades consideradas frívolas, mas que simbolizam (na percepção do histriônico) grandeza e ostentação (na atualidade, muitas vezes percebida como a quantidade de seguidores nas redes sociais, de publicações ou referência pelas mídias jornalísticas).

 

No ambiente corporativo, as pessoas nessa condição têm por hábito exacerbar seus feitos, podem ter dificuldades para o trabalho em equipe, por serem competitivas e se isso significar “dividir os holofotes”, e adotar caminhos escusos para conquistar o almejado reconhecimento. São facilmente reconhecidas pelo uso frequente do pronome pessoal “eu”, desconsiderando todo e qualquer esforço de equipe ou em decorrência de uma autoimagem distorcida da verdade, pelo excesso de mensagens (muitas vezes invasivas e no estilo “spam”) de autopublicidade ou, pior, pela depreciação ou sabotagem de colegas. Na sua pior faceta, para o atingimento de seus desejos, podem adulterar resultados, por exemplo, financeiros, usar dos recursos da empresa para proveito próprio e mesmo praticar suborno e corrupção.

 

Como líderes, representam um grande risco para a atmosfera corporativa, pois estão propensos a mudar rapidamente de opinião, uma vez que tendem a manifestar pontos de vista que agradam os interlocutores. É o caso, por exemplo, do chefe que adota uma postura de apoio, estímulo à equipe numa reunião intimista, mas na presença de profissionais de outro departamento ou de superiores do próprio líder, tem uma abordagem depreciativa, crítica.

 

De modo similar ao histriônico, porém de forma mais intensa, o psicopata narcisista é exagerado quando o assunto é superioridade. Ele tem um senso inflado de sua própria importância, profunda necessidade de admiração e atenção, tendo, para tanto, comportamentos de auto endeusamento e cultuação dos próprios talentos e conquistas.

 

Não obstante a aparência segura, por trás da máscara de extrema confiança está uma frágil autoestima, que é vulnerável à menor crítica, pelo que tendem a ter dificuldade de aceitar avaliações negativas ou mesmo serem corrigidos de seus erros.

 

Em razão da tendência a esperarem favores especiais e ao cumprimento inquestionável de suas expectativas, inclinam-se a relacionamentos arriscados, como com autoridades públicas que podem lhes garantir algum benefício, gerando risco de corrupção, favorecimento em licitação, dentre outros ilícitos.

 

Além disso, propendem a monopolizar as conversas e a menosprezar pessoas que percebem inferiores, o que, no ambiente de trabalho, prejudica o desenvolvimento de reuniões e, se ocupantes de cargos de liderança, o Tone at the Top. Também, a aproveitar os outros para conseguir o que desejam, a comportar-se de maneira arrogante e a insistir para ter o melhor de tudo – por exemplo, a melhor sala.

 

Consequência das características mencionadas, o narcisista pode agir com raiva ou desprezo e mesmo tentar depreciar colegas, de modo a se sentir superior, gerando o risco de assédio moral, caso sua atuação (indevida) seja recorrente e direcionada a um profissional ou grupo de profissionais.

 

O psicopata paranoide, por outro lado, é caracterizado por ideias supervalorizadas, o que decorre da extrema estreiteza de seus pensamentos, interesses unidirecionais, maior presunção, egocentrismo, desconfiança e suspeita de que os outros pretendem explorá-lo, prejudicá-lo ou enganá-lo.

 

Os possuidores dessa patologia podem ser considerados fanáticos, haja vista sua vontade indestrutível e sede de luta. Neles é comum o foco “invenção” e “reformismo”, possivelmente decorrente da criação de inimigos imaginários.

 

Eles são hipervigilantes quanto a potenciais ofensas, insultos, ameaças e deslealdade, e procuram significados ocultos em observações e ações daqueles com os quais interage, razão pela qual tendem a examinar atentamente nos outros evidências para dar suporte às suas suspeitas. Por exemplo, pode ser o caso do paranoide que interpreta que a oferta de ajuda denota do entendimento de que ele é incapaz de realizar determinada tarefa, o que pode levá-lo a contra-atacar, por se sentir insultado e pela necessidade de ser autônomo e estar no controle; ou o paranoide detentor de cargo de controle e fiscalização, que sobrestima e deturpa consultas que lhe são apresentadas, como se o interlocutor tentasse, na verdade, ocultar algum fato indevido, enganá-lo, ou o que define a todos os fiscalizados como fraudadores,  apresentando, em resposta, propostas de “tratamento inigualável/ indubitável” (a supervalorização de suas propostas é resultado de sua excessiva vaidade e orgulho em si próprio).

 

Nas empresas, o paranoide representa um risco ao trabalho colaborativo, às equipes, pois hesita em confiar ou a desenvolver relacionamentos, receia que qualquer informação possa ser usada contra ele ou duvida da lealdade de colegas e parceiros comerciais – essa última característica representa especial risco quando o profissional com TPP (transtorno de personalidade paranoide) está encarregado pelas vendas ou pelo estabelecimento/ gestão de parcerias comerciais. Quando na posição de chefes de equipe, tendem a prejulgar os liderados e a ter interpretações e observações errôneas de um profissional ou da coletividade, por exemplo, que um profissional almeja sua posição ou que seu time não reconhece sua liderança.

 

Por fim, e sem o intuito de esgotar o tema, é fundamental mencionar o transtorno ansioso, cujo portador tem uma sensibilidade excessiva em relação às críticas, pende à timidez e insegurança e a ter um constate sentimento de tensão e apreensão.

 

Chamado por Freud de “neurose da angústia” e indicado pelo escritor e psiquiatra Augusto Cury como “o mal do século”, o transtorno de ansiedade existe quando o indivíduo se prepara para reagir ao risco mesmo quando não há um risco claro, tornando-se essa reação um comportamento-padrão, e não eventual.

 

Esse transtorno, do qual o Brasil carrega o inglório título de campeão mundial, segundo aponta a OMS (Organização Mundial da Saúde), pode se manifestar no trabalho de diversas formas, como o medo de falar em público, pânico e temor de demissão ou da não conquista de uma promoção.

 

Representado também pelo sentimento de insegurança, o profissional ansioso frequentemente sente estar sendo analisado e tende a preocupar-se excessivamente, aspecto que pode contaminar toda uma equipe, caso compartilhe seus pensamentos ansiosos com colegas ou reflita suas “angústias” na equipe.

 

Outra característica do angustiado, que sob a ótica corporativa gera uma antítese, é o perfeccionismo. Se por um lado a propensão ao perfeccionismo pode interessar recrutadores e ser essencial a algumas atividades que exigem precisão e esmero, por outro lado pode impelir o indivíduo à fraude, uma vez que a necessidade de o ansioso de sempre acertar pode levá-lo a “encurtar caminhos”, resultando na infração de leis e/ou políticas internas, ou a ocultar seus erros.

 

Esse último aspecto tem ainda um outro fator de impacto nas empresas, o receio de que uma determinada atividade não fique perfeitamente impecável, ou o simples sinal de que as coisas podem sair um pouco do eixo, pode levar o ansioso à inércia, prejudicando, em alguns casos, uma linha de produção ou mesmo o cumprimento de prazos junto à clientes.

 

Como demonstrado, as psicopatias, como transtornos de personalidade em geral, podem ser caracterizadas como uma mudança patológica no caráter de uma pessoa, em termos de traços de personalidade, que trazem dificuldades para a vida normal corporativa (e mesmo em sociedade), interfere na construção de relacionamentos e no desempenham laboral, podendo inclusive serem propulsoras de fraudes, além de gerarem prejuízos para a empresa, notadamente sua cultura.

 

Nesse contexto, e tendo em conta que o comportamento de uma pessoa pode ser modificado não apenas em virtude dos tipos de psicopatia, adquirindo uma reatividade a certos grupos de estímulos – por exemplo, momentos de crise da empresa (ou do mercado), turnover de liderança, resultados aquém dos projetados –, é importante destacar que defeitos irreversíveis de personalidade não são inerentes aos psicopatas. Também que, sob condições ambientais favoráveis (daí enfatiza-se a importância de ambientes de trabalho saudáveis e seguros), as anormalidades mentais dos psicopatas podem ser suavizadas.

 

O exposto reforça a pertinência de condução de diligências para o conhecimento de candidatos e colaboradores – background check, testes psicológicos e de resiliência ética (reconhecidos e realizados conforme orientações do Conselho Federal de Psicologia) –, além do monitoramento contínuo dos integrantes do quadro de colaboradores, de modo a identificar traços de psicopatia ou defeitos de personalidade que não lhe são próprios, mas que podem resultar em prejuízos imensuráveis para a empresa, além do desempenho de ações conexas, necessárias à criação de um ambiente que não acione os “gatilhos mentais” dos acometidos por psicopatia.

 

Também reforça a parceria entre o compliance e outras áreas da empresa, não apenas o RH, pois importante uma avaliação comportamental regular por profissionais de variadas expertises e níveis, inclusive pelo fato de os psicopatas serem, via de regra, inteligentes, sedutores e até mesmo manipuladores, o que pode mascarar suas características reais numa entrevista, ademais, por inclinarem-se a não medir esforços para atingirem seus objetivos, o que inclui trapaças e outras ações para subir no cargo e se dar bem financeiramente, o que é mais facilmente notado por aqueles com os quais interagem.

 

E, outrossim, e não menos importante, o exame pormenorizado dos registros no Canal de Denúncias ou dos relatos feitos ao Compliance Officer ou RH, a fim de identificar traços de psicopatia e evitar comportamentos que inclusive podem colocar a integridade física ou a vida de profissionais em risco.

 

* Gabriela Alves Guimarães é advogada especialista em compliance e sócia da FourEthics Consultoria

 

 

Foto de abertura: Divulgação/FourEthics